sexta-feira, 4 de abril de 2014

Lírios, Lavanda e Jasmim*

Foi uma manhã como outra qualquer. Porém, o sol brilhou com uma luminosidade especial, parecia que as cores estavam mais bem definidas, eu enxergava melhor, quase podia sentir em mim aquelas cores vibrando, como em um sonho.
Vesti um shorts. um par de meias velhas e um tênis fácil de limpar, depois de perceber que parte do dia escorrera por entre meus dedos. Em poucos minutos alcanço a rodovia e, logo em seguida, a abertura na mata. O cheio de terra e folhas mortas era intenso. O barulho do vento na vegetação soava claro e melancólico. Os pneus se chocando contra a lama, contra as pedras, o aço da corrente batendo no alumínio do quadro... Pareço estar completamente integrado à paisagem - eu e minha bicicleta.
Borboletas, gafanhotos, aves e até um pequeno bando de quatis parecem parar no tempo para me ver descer a trilha em alta velocidade. Curvas, saltos, a velha ponte de madeira... Tudo fica para trás ap´pos correr diante de meus olhos. Não existe tempo ou espaço aqui. Como em um universo paralelo livre de leis físicas, me sinto livre.
Tão logo chegam os primeiros pingos de chuva as lembranças se esvaem. Os amigos, família, trabalho, estudos, até mesmo meu nome. Aos poucos tudo torna-se vazio. Somente a natureza existe; eu, não mais. A velocidade torna-se quase insuportável. Já não distinguo a paisagem. A bicicleta move-se sozinha, seguindo a rota costumeira.

Quando sinto a parada brusca percebo que não há mais bicicleta - estou completamente integrado à natureza. Inspiro profundamente, olho ao redor. Penso em erguer as mãos e olhá-las, mas não tenho mãos. Expiro. Nada além de mata, pedras, folhas, flores, pingos de chuva, ar, brisa, o canto do sabiá no alto de uma imbuia em flor.
O calor daquele dia de verão se extinguira. Também não havia frio. Só havia chuva. Inspiro. A percepção diminui, perco a consciência vagarosamente, fecho os olhos até que eu não exista para poder expirar.
Abro os olhos e vejo diante de mim um espelho, mas nada havia refletido nele senão água, peixes, plantas e pedras de rio. Realmente, eu estava dentro do rio. O som da pequena queda d'água se fez real para meus ouvidos ausentes e a pressão da água surge sobre minha pele. Aos poucos a consciência volta, tão lentamente quanto se foi.
Recordo quem sou, as bandas favoritas, os quadros que ficaram gravados na memória, os discos que fizeram parte de tantos momentos...
Percebo minhas mãos, braços, pernas. Tenho vontade de expirar. As bolhas de ar saem de meus pulmões e espalham-se, no espelho, chegando à superfície. As lembranças se colorem, o vermelho e o preto ganham destaque, abre-se um sorriso. O ar acaba, volto para a superfície e logo os pingos de chuva, o verde, o cheiro de terra, das folhas mortas e do musgo voltam a existir. Sinto a brisa tocar minha pele, inspiro novamente. Encho os pulmões e sinto a vida fluir, naquele momento, em tudo ao meu redor.
Já não estou dentro d'água. A pequena cachoeira não pode mais distorcer a imagem refletida pelo espelho, que também se faz vida. Os longos cabelos molhados pendem sobre a pele alva. Os olhos amendoados voltam-se para mim. A imagem do espelho ganha vida, forma e movimento. Aproxima-se lenta, o sorriso ainda mais iluminado. Claramente traz consigo o perfume de flores do campo. Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude ergue os braços e estende-os à minha volta. Não vejo o movimento dos lábios, mas a voz doce e melódica ecoa em minha mente, me chamando para partir. Vejo-me agora envolto por aquela criatura, tão eu, tão única, saída da natureza num quadro surreal, inimaginável, sinto meu corpo leve, suspenso no ar, enquanto nos movíamos para longe dali. As lembranças, os gostos, os gestos, tudo se recria exatamente como sempre foi, como num sonho, como em outro universo, como numa outra vida.


*Escrito ao som da chuva, um violino distante e Coil, da banda Opeth.


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