Na foto, o Jardim Botânico Créditos: Parques e Praças de Curitiba |
Um calor toma lentamente conta de meus ossos congelados. A noite foi
fria e dolorida. Lembro-me que antes de adormecer cachorros vieram
virar o lixo da esquina, brigaram por causa de algo e foram embora.
Minha cabeça está latejando, meus ossos doem, o corpo calejado de
maus tratos está ficando velho e já não suporta a calçado dura. O
corpo reclama, criou vida própria.
Sento-me e me reencosto na parede da lanchonete, pessoas apressadas
passam por mim sem me notar, vão preocupadas com suas próprias
dores, são tão iguais em seu caminhar, em seus toques toques. Mas
há diferenças. Observo-as atentamente, algumas falam ao telefone,
umas de maneira irritadas, outras de maneira amorosa. Algumas pessoas
combinam com a paisagem cinzenta do centro de Curitiba, parecem
locomotivas com seus chaminés, vestem escuro ou roupas surradas e
fedem a cigarro. Outras (são poucas) parecem anjos, possuem cheiro
gostoso de perfume, têm cheiro de pele limpa. E os cheiros se
misturam ao cheiro de pastel quentinho, de café, de pão francês.
Minhas barriga ronca, preciso comer. Ensaio meu olhar mais
suplicante, mais faminto o direciono à multidão.
Dentre muitos, uma senhora bem vestida, retira de um pacote de papel
pardo um pão, que pelo cheiro estava fresquinho, e com certo receio
atira-o para mim. Eu o devoro em três mordidas, estou faminto. Sinto
uma coceirinha insistente atrás do pescoço, deve ser sarna, estou
cheirando muito mal.
Ali do meu canto em meio a um trapo, deito-me na busca de algum
conforto. Alguém me cutuca as pernas com um cabo de vassoura.
- O rapaz vá procurar outro canto, rapidinho!
A lanchonete vai abrir, não há lugar para um ser como eu. É hora
de começar minhas andanças.
Minhas pernas estão dormentes, espreguiço-me para ver se resolve.
Coço-me. São tantos lugares que me coçam e dou início ao meu dia
sem propósito.
Caminho olhando para o chão, com a desculpa de que eu possa
encontrar algo que sirva, mas na verdade não tenho coragem de
levantar meus olhos, tenho medo da rejeição, embora ela seja minha
irmã. Sou um ser machucado, não quero que me façam sangrar.
De cabeça baixa, posso passar por entre as pessoas, elas abrem um
espaço, elas também têm medo de minha reação, enojam-se do meu
cheiro (estou me iludindo, acho que não me veem e o meu cheiro se
confunde com tantos outros).
Eis que ouço:
- Ei, você, vem aqui!
Olho em direção ao chamado e desconfiado, paro.
- Você, vem cá!
Era um homem de camisa estampada, bem retrô, bem menor que a
barriga que cobria, calça social e sapato surrado. A barba grisalha
cobria o contorno dos lábios e em sua mão havia metade de uma
coxinha.
- Vem cá rapaz, por que o medo?
Exitei um pouco, mas fui chegando devagar, deu-me a metade da
coxinha e resmungou.
- Muita engraxada! E seguiu seu caminho.
As pessoas são tão boas comigo, sempre tenho o que comer. E fato
que não querem conversa comigo. A ternura que eu sonho em ver no
olhar é substituída por medo, nojo ou qualquer coisa parecida com
isso, mas minha barriga vazia sempre recebe um afago.
Entro no Passeio Público, bebo um pouco de água. Sento-me à
sombra de uma árvore e tenho um momento de paz. Sinto-me seguro
aqui apesar de toda a companhia que me cerca. Mulheres enrugadas,
com beiços lambuzados de batom vermelho, cheirando perfume forte
desfilam de um lado para outro, sabem que são observadas por olhos
fundos dos malandros. Sorrio por dentro, o bicho homem e seus
instintos, ele os segue selvagem, sem amor, sem consideração.
Necessidade saciada, dinheiro sujo na mão, nem te ligo.
É engraçado isso tudo. Fico horas ali a observar, passam menores
fedendo a tiner, olhos esbugalhados rubros. Passam casais com
crianças ansiosas para verem os bichos. E eu ali feito tapete,
camuflado entre a árvore e a grama, ninguém me vê.
Começo a ficar enebriado pelo movimento, uma dormência toma conta
do meu corpo magro, a vida de rua não tem nada de bom, é
entendiante como qualquer outra vida. É triste e tem sabor amargo,
é mais solitária que qualquer ilha do mundo.
Minhas pálpebras começam a se fechar, consigo ouvir pessoas que de
longe vêm se aproximando. De olhos fechados percebo que elas param
perto de mim. Sinto a respiração do ser, seu hálito de balas de
morango. Afagam minha cabeça.
- Coitado, tão sozinho.
Alguém finalmente é terno comigo, não quero abrir meus olhos,
tenho medo de estar sonhando.- Vou te levar para casa.
Meu Deus, vou conseguir uma cama quentinha, será meu grande dia???
Duas pequenas mãos envolvem meu corpo magro e me levantam do chão,
sinto o calor do ser que me afaga em seu colo e que me carrega para
um destino talvez, mais aconchegante.
No caminho enxergo seres maltrapilhos, homens e mulheres rotos,
famintos cheirando a urina. Sinto pena desses seres. Eles sim, levam
uma vida de cão e ninguém vai levá-los para casa.
(Jaqueline Andrade Borges)
Agradecimento do Blog:
O Blog agradece à escritora Jaqueline por ceder gentilmente seu conto de estreia. Todo sucesso nessa empreitada e continue conosco.
Real!
ResponderExcluirAcontece todos os dias em qq cidade!
E cada vez aumenta mais os homeless humanos e animaia .
Excelente conto
Olá, grato Marina, também gosto muito deste conto. Um grande abraço!
Excluirmuito bom!!
ResponderExcluirObrigado pela colaboração. Continue conosco. Um abraço 🙏
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