(Imagem obtida em: https://pixabay.com/pt/photos/choro-luto-mulher-cara-triste-3332113/)
Há muito tempo tenho pensado em registrar de alguma forma as coisas que se passam conosco ou que simulamos passar. Acredito que o mundo precisa saber quantos mistérios uma vida qualquer guarda, ou quantos mundos cabem em um só ser. Quantas vezes pensamos como mártires de uma causa inglória e quantas vezes nos fazemos alheios aos pedidos de ajuda. Quantas vezes internalizamos pensamentos psicopatas e quantos outros momentos nos atormentamos de culpa. Ora somos heróis, ora somos bandidos. Tem momentos que o amor nos move, em outros vivemos pela força do ódio. Ora nos comportamos como vítimas, ora somos os algozes. Imploramos por vida, suplicamos pela fuga através da morte. Em raros momentos somos gratos, em outros blasfemamos uma chuva fria
Contradição deveria ser nosso nome. Loucura nosso sobrenome. Carência e fraqueza, alma e coração.
Então que se inicie a vida.
Crônica da menina perfeita.
Olhava-se no espelho e via quão linda era ela, o rosto sempre parecia com os dos anjos que vira ilustrado nas páginas de uma antiga Bíblia, sorria para si mesma, examinava minuciosamente os ângulos de seus lábios de boneca: perfeitos. Pescoço, ombros, seios, braços, mãos, dedos, pernas, pés, nádegas e vagina, tudo em seu devido lugar. Cada um em sua engenhosa utilidade, nadinha, nadinha de estranho. Vez ou outra, sempre lembrada por seus pais, o quão bonita era, o quão ágil era seu caminhar, quão habilidosa era com as pequenas mãos que produziam uma caligrafia invejável, o quanto ela era independente e o quanto isso era um alívio para eles. Ela era perfeita.
Chegava na escola todos os dias com o rosto escondido entre os cabelos encaracolados, e o resto deixava submerso no capuz do moletom azul. Falava pouco, sorria pouco. Tinha seu mundo próprio, seu mundo odiosamente perfeito. Passava como ser invisível entre tantos outros adolescentes. Não tinha sequer a vontade de olhar para trás. Seguia seu cotidiano pedagógico sempre da mesma forma., sempre do mesmo lugar da sala, sempre com o mesmo olhar distante e desinteressado, porque sabia que era perfeita. A perfeição que a cercava era como um capítulo reprisado de uma novela barata onde um oportuno conflito tardava a aparecer. E nesse novelo de sua vida, onde os fios se dispunham lado a lado sem nada emaranhar, sem nada produzir, sem nenhuma cor para mostrar, Ana apenas respirava e deixava-se ser conduzida pelos movimentos síncronos e estáveis como uma perfeita marionete.
Até que um dia Ana recebeu o olhar indagador de uma professora, uma senhora no alto dos seus 55 anos. O olhar imperfeito marcado por rugas daquela mulher penetrou profundamente nos olhos de Ana. Sorriu. Tocou com as mãos sujas de giz em seu ombro sujando de branco seu moletom azul.
_ Você está bem, menina?
A pergunta perfeita para a menina perfeita, foi como uma pedra lançada em um lago. Ondas enormes foram produzidas e cobriram qualquer possibilidade de fuga. Ana não respondeu. A professora continuava sorrindo e como num mimetismo involuntário Ana sorriu também.
Alguém a olhou. Alguém ousou perguntar sobre ela. Ela tão perfeita, tão perfeita, tão perfeita. Mas nada foi dito sobre sua perfeição, sobre o quanto era linda, sobre como seu caminhar era hipnotizante. A professora a instigou. Que magia seria aquela de dizer o indecifrável?
Não havia dúvidas, Ana estava com algum problema. Sua experiência de anos de docência a levava a essa conclusão. Ana era o símbolo da apatia, e desde que a percebera a mesma não a a deixava em paz. Enganchava-se no seu braço sempre que podia, queria abraçá-la e sempre que podia declarava seu amor a ela. Ana a esperava na saída, lamentava-se da vida familiar, falava que queria morar com ela. A professora algumas vezes sentia-se incomodada com tanta dependência emocional, mas ao mesmo tempo sabia que Ana precisava achar um porto para ancorar suas decepções de adolescentes.
Apesar de Ana abrir-se com a professora e nela demonstrar certa confiança, nada era esclarecido, a única coisa que era explícita era sua carência e o amor filial que dedicava a sua docente. A professora era paciente.
E numa das saídas para casa, na rua, a professora a acompanhou, foram de braços enganchados, admirando os cachorros da rua, falando sobre o tempo. Ana olhou para seu tênis, o cordão desamarrado. Era uma boa hora para testar, falou com a voz manhosa:
_ Professora, amarra meu tênis?
A professora a olhou com o olhar de mãe de comercial de TV, abaixou aos seus pés, aos pés de Ana, a perfeita, e com cuidado fez um laço, um laço perfeito.
Ana ficou atônita, poderia finalmente dividir seu plano com alguém.
Havia um desejo escondido , algo que não contara a ninguém , como tantas outras coisas que nunca falará: a vontade enorme de morrer. Morrer parecia algo fantástico, enfim uma aventura. Seria sua “Hora da Estrela”, como a Macabeia de Clarice Lispector, teria seu momento de glória. Contou o plano para a professora. “Me leva até em casa profe, só hoje”.
Era perceptível nos olhos da mulher o quão preocupada estava com a situação. “Eu irei, mas você me contará o motivo desse seu plano”.
Com um silêncio ensurdecedor selando um acordo caminharam as duas de braços dados até a casa de Ana. Na garagem a professora avistou um jovem cadeirante, pernas em osso, braços moles caídos ao lado corpo, hora ou outra alguma saliva corria no canto da boca. Estava cercado de atenção pela mãe da menina que o alimentava na boca com bolacha e leite, e de momento em momento, limpava seu rosto com uma toalha, e num instante um beijo terno foi dado na testa do jovem, beijo de mãe. Era como um quadro perfeito de amor incondicional, era a Pietá contemporânea.
Ana olhou para a professora: “Meu irmão, professora. Meu irmão. Entende agora? Eu sou perfeita demais para fazer parte disso.”
Perfeita demais.
(Jaqueline de Andrade Borges)
O blog agradece a escritora por ceder o direito de publicação esse bem escrito texto.
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