terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Paixão sólida



1
Naquele momento ela impressionava pelo sentimento de solidão no jardim, embora já fizesse muito, muito tempo que ali se encontrava.
Seus ombros desnudos por vezes ardiam sob o sol escaldante. Ocasiões havia, entretanto, em que aparentava sentir-se enregelada pelo ar frio que noutras vezes inundava o local.
Passantes sem conta circulavam pelo jardim, alguns a pé, outros em bicicletas, outros ainda em triciclos. Raros eram os cadeirantes, senão quando apareciam em excursão ou quando participavam de uma paraolimpíada na cidade. Poucas pessoas, contudo, se entretinham a observá-la. Era mais uma na multidão. Ela, por sua vez, parecia cuidar em fitá-las quando não as distraía. Era possível que as notava passear pelo grande jardim, a aproximar-se das roseiras e de algumas outras plantas floridas para absorverem os aromas das flores.
Vez ou outra algum caminhante desaparecia adiante, quando empreendia passeio no bosque que circundava o jardim, até suas extremidades. O emaranhado de arbustos e de árvores maiores findava no gramado lateral e fronteiriço ao grande edifício que, imaginava-se, deveria ser do proprietário daquela extensa área verdejante. Vasta extensão de campos cobertos de uma cultura (podia ser trigo, ou cevada, quem o saberá?) fazia-se lindeira a esse grande bosque. Ao longe, o murmurar das conversas dos camponeses – era provável que ela os ouvisse.
Seu olhar mostrava-se fixo ao horizonte naquele instante, e seus ouvidos davam a aparência de estarem despertos ao som alastrado pelo sino do campanário, que batia em horários determinados.
Certo homem, que por vezes se fazia acompanhar por dois ou três auxiliares, cuidava o jardim, mantinha-o limpo e bonito, e por isso era, além dela, o frequentador mais assíduo daquele espaço. Era o jardineiro. Ele sempre teve noção da presença dela naquele jardim. Até a tocava de vez em quando. Naquele dia, porém, o jardineiro não apareceu. Era o dia de folga do homem.
Um caminhante por certo percebeu o horizontal olhar dela. Vislumbrou-a como um misto da Vênus de Milos e da Afrodite de Camille Claudel. Ela, porém, deu a entender que se mantinha impassível, parecendo nem notar que alguém a observava. Instantes depois, cientificando-se o sujeito que os cabelos da mulher eram curtos, lisos sobre o crânio e encaracolados ao descerem por sobre os ombros, resolveu seguir adiante sem piscar o olho. Não era raro isso acontecer.


2


Novidades sempre são bem-vindas, ademais quando trazem alguma esperança de melhores momentos.
Comumente, as novidades chegam com a primavera. No início dessa nova estação, ela estava no jardim quando um jovem varão apareceu acompanhado de vários homens e uma estranha máquina. Depois de várias conversações entre eles, durante as quais esse jovem manteve-se silente, os mais velhos se dispersaram e deixaram o noviço a sós consigo mesmo.
O novato deu ares de não haver titubeado ao parecer enxergar aquela formosa figura feminina a não muitos passos de distância. E assim indicou ter enveredado pelas conversas de pensamento. Aparentou ter lançado a ela um olhar de menino conquistador, cuja resposta teve a forma semelhante a um desdém de quem se sentia mais velha para aquele pretenso galanteador.
Passaram-se alguns dias durante os quais sempre houve esse encontro de olhares no jardim, porquanto ela, como ele, sempre se fazia presente naquele lugar – e, por menos crível que pudesse parecer, nos mesmos locais daquele espaço. Mas ele teve o aspecto de quem não desdenhou do olhar dela. Contudo, o fato de se avaliar que ela ignorava a presença dele era proporcional à apreciação que se tinha da altivez com que ele a visava. Havia, portanto, um vazio entre eles – não somente averiguado pela distância física que os separava – mas que muitos caminhantes nem chegaram a notar.
O jardineiro, no entanto – exceto nas suas folgas –, deu-se conta da frequência daquelas figuras frente a frente (embora distantes entre si) no jardim, sempre mantido limpo e lindo. Cuidou em observar a atitude nada tímida que demonstrava o jovem varão perante o olhar que julgou desdenhoso daquela fêmea. A distância entre ambos, porém, não diminuía. E assim os observando, teve a nítida impressão de presenciar o seguinte diálogo travado entre esses vultos, ainda que imperceptível por qualquer outra pessoa, talvez mesmo para o próprio jardineiro, atribulado com sua faina:
– Que te fiz eu, para que me ignores com tanto desdém? – teria perguntado o moçoilo ao questionar a donzela.
– Nada me fizeste – haveria de ter respondido a figura feminina – apenas te considero muito imaturo para meu gosto. Estás verde, ainda, e tuas maneiras e teu olhar não me agradam.
– Ao menos, és sincera! – teria dito o moço.
Assim conversados conforme pareceu ao jardineiro, teriam os dias continuado a passar, mas não sem se olharem mutuamente no passar do tempo.
Um dia chegou, no entanto, em que outros homens avizinharam-se do rapazola. Fizeram-no sair do lugar e acompanhá-los em uma viagem sobre a qual ninguém nunca soube o destino nem a razão.


3


A moça – era opinião de quem a notasse – viu-se solitária novamente, posto permanecesse a frequentar aquele jardim, nada obstante várias pessoas continuassem a circular ao seu redor.
Essa solidão não perdurou muito tempo. Outros homens com outra máquina fantástica e maior foram ter por mais de três horas no jardim. O jardineiro os acompanhava na lida que encetaram. Laboraram harmoniosamente, entre conversas e ditos de piadas que lhes faziam gargalhar.
Uma figura masculina, porém, permaneceu naquele local depois que os demais se retiraram. Já não se tratava daquele rapazote d’outro dia, era um ser aparentemente mais maduro, possuindo testa larga, tez branca lisa das pálpebras às bochechas. Ostentava, todavia, finas sobrancelhas e média barba. Pareciam azulados seus olhos (será que os eram?) e seus cabelos quase louros eram expandidos e ondulados, cobrindo suas orelhas e a caírem-lhe por trás do pescoço. Vestia camisa clara de mangas longas – amarelada pelo tempo – e, sobre ela, um colete marrom aberto. A camisa, entreaberta, deixava ver seu peito nu. Suas calças, avermelhadas, desciam somente até às canelas, enquanto seus pés estavam descalços.
Sob o braço esquerdo carregava maços de papeis agregados contra seu flanco. A mão direita, erguida, posicionava-se próximo à face justo no momento em que ela deu a impressão de observá-lo, sendo possível notar sua boca estreita, levemente aberta, como que a anunciar alguma notícia.
Há quem diga que teria sido amor à primeira vista. Se bem que em diagnóstico simples poderíamos desvendar que ela, certamente, havia acompanhado toda a desenvoltura dele em meio às conversações adredes enquanto ele comungava da companhia dos demais homens. Dava ela, pois, a impressão de haver-se apaixonado pelo varão. Eis que surge a dúvida: será, porém, que seria correspondida no sentimento que parecia evidenciar?
Quem passasse pelo jardim e observasse atentamente a figura daquela mulher – sempre presente ali – teria a sensação de deparar com alguém de fato apaixonado.
Mas, quem se detivesse a analisar aquele vulto masculino, perceberia em seu semblante a expressão de algum sentimento em relação a ela?
O olhar dele vagava em direção ao horizonte, e de sua boca saía um som inaudível. Impressionava, no entanto, as tonalidades que se viam em sua tez a cada vez que se lhe fitava com atenção: ora alva, ora amarelejada, ora ruborizada, a depender do ângulo pelo qual se podia vê-lo.
Nada obstante isso, era difícil decifrar de sua figura máscula se também nutria algum sentimento pela moça.


4


Os dias foram passando, entremeados com chuvas, sol e sombras. Acumularam-se em semanas e meses.
As duas figuras, entretanto, fizeram suas presenças ser constantes naquele jardim. E sempre a manterem-se frente a frente.
O amor que desde o início ela pareceu ter passado sentir por ele nunca pôde ser manifestado por um toque sequer. Muito menos alguém teve a impressão se pôde ela descobrir se os sentimentos que tinha ares de mostrar eram recíprocos. A distância entre eles sempre foi constante, jamais se aproximaram como jamais se afastaram. Nem qualquer pessoa – com ou sem auxílio de algum maquinário – os juntou ou os separou além do que permaneciam até então.
Em que pese isso, o sentimento que se descortinava na corporatura feminina era de que, no mínimo, não se sentia mais tão solitária. Exprimindo aspecto de seguir apaixonada pelo varão, era possível depreender que estava alegre com a sua companhia, ainda que dele estivesse distanciada, e, como se fosse humana, tal qual a figura masculina, pudesse ouvir, às vezes, o sino do campanário, ou o rumor dos camponeses quando manejavam suas plantações ao largo.
O jardim continuou a receber a visita de caminhantes, passeantes, dos quais somente raras pessoas puderam aperceber-se das expressões daquelas duas esculturas que ornamentavam esse lugar de passeio, dos quais a mulher parecia exprimir sentimentos verdadeiramente humanos – a figura feminina torneada em mármore como se fosse obra exemplar de Camille Claudel esculpida em pedra de Milos – a demonstrar uma paixão inverossímil pela silhueta diante de si, o musculoso varão transmudado de pedra bruta em jornaleiro, enigmático na demonstração de um improvável e inconcebível sentimento.

Alexandre Meyr

O Blog agradece ao escritor por, gentilmente, ceder o seu conto para publicação.

3 comentários:

  1. Agradeço a oportunidade oferecida pelo Blog para divulgação desse meu primeiro conto. Alexandre Meyr

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    1. Opa... o blog que agradece. Aguardamos os próximos. E mais uma vez, parabéns por seu conto. Muito bom!

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  2. Primeiro conto? Um belo conto, Alexandre.

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