sexta-feira, 23 de junho de 2023

Crônica da menina perfeita (chronicle of the perfect girl)

Choro, Luto, Mulher, Cara, Triste 

 (Imagem obtida em: https://pixabay.com/pt/photos/choro-luto-mulher-cara-triste-3332113/)

 

Há muito tempo tenho pensado em registrar de alguma forma as coisas que se passam conosco ou que simulamos passar. Acredito que o mundo precisa saber quantos mistérios  uma vida qualquer guarda, ou quantos mundos cabem em um só ser. Quantas vezes pensamos como mártires de uma causa inglória e quantas vezes nos fazemos alheios aos pedidos de ajuda. Quantas vezes internalizamos pensamentos psicopatas e quantos outros momentos nos atormentamos de culpa. Ora somos heróis, ora somos bandidos. Tem momentos  que o amor nos move, em outros vivemos pela força do ódio. Ora nos comportamos como vítimas, ora somos os algozes. Imploramos por vida, suplicamos pela fuga através da morte. Em raros momentos somos gratos, em outros blasfemamos uma chuva fria

Contradição deveria ser nosso nome. Loucura nosso sobrenome. Carência e fraqueza, alma e coração. 

Então que se inicie a vida. 



Crônica da menina perfeita.


Olhava-se no espelho e via quão linda era ela, o rosto sempre parecia com os dos anjos que vira ilustrado nas páginas de uma antiga Bíblia, sorria para si mesma, examinava minuciosamente os ângulos de seus lábios de boneca: perfeitos. Pescoço, ombros, seios, braços, mãos, dedos, pernas, pés, nádegas e vagina, tudo em seu devido lugar. Cada um em sua engenhosa utilidade, nadinha, nadinha de estranho. Vez ou outra, sempre lembrada por seus pais, o quão bonita era, o quão ágil era seu caminhar, quão habilidosa era com as pequenas mãos que produziam uma caligrafia invejável, o quanto ela era independente e o quanto isso era um alívio para eles. Ela era perfeita. 

Chegava na escola todos os dias com o rosto escondido entre os cabelos encaracolados, e  o resto deixava submerso no capuz do moletom azul. Falava pouco, sorria pouco. Tinha seu mundo próprio, seu mundo odiosamente perfeito. Passava como ser invisível entre tantos outros adolescentes. Não tinha sequer a vontade de olhar para trás. Seguia seu cotidiano pedagógico sempre da mesma forma., sempre do mesmo lugar da sala, sempre com o mesmo olhar distante e desinteressado, porque sabia que era perfeita. A perfeição que a cercava era como um capítulo reprisado de uma novela barata onde um oportuno conflito tardava a aparecer. E nesse novelo de sua vida, onde os fios se dispunham lado a lado sem nada emaranhar, sem nada produzir, sem nenhuma cor para mostrar, Ana apenas respirava e deixava-se ser conduzida pelos movimentos síncronos e estáveis como uma perfeita marionete. 

Até que um dia Ana recebeu o olhar indagador de uma professora, uma senhora no alto dos seus 55 anos. O olhar imperfeito marcado por rugas daquela mulher penetrou profundamente nos olhos de Ana. Sorriu. Tocou com as mãos sujas de giz em seu ombro sujando de branco seu moletom azul. 

_ Você está bem, menina?

  A pergunta perfeita para a menina perfeita, foi como uma pedra lançada em um lago. Ondas enormes foram produzidas e cobriram qualquer possibilidade de fuga. Ana não respondeu. A professora continuava sorrindo e como num mimetismo involuntário Ana sorriu também.

Alguém a olhou. Alguém ousou perguntar sobre ela. Ela tão perfeita, tão perfeita, tão perfeita. Mas nada foi dito sobre sua perfeição, sobre o quanto era linda, sobre como seu caminhar era hipnotizante. A professora a instigou. Que magia seria aquela de dizer o indecifrável?

Não havia dúvidas, Ana estava com algum problema. Sua experiência de anos de docência a levava a essa conclusão. Ana era o símbolo da apatia, e desde que a percebera a mesma não a a deixava em paz. Enganchava-se no seu braço sempre que podia, queria abraçá-la e sempre que podia declarava seu amor a ela. Ana a esperava na saída, lamentava-se da vida familiar, falava que queria morar com ela. A professora algumas vezes sentia-se incomodada com tanta dependência emocional, mas ao mesmo tempo sabia que Ana precisava achar um porto para ancorar suas decepções de adolescentes. 

Apesar de Ana abrir-se com a professora e nela demonstrar certa confiança, nada era esclarecido, a única coisa que era explícita era sua carência e o amor filial que dedicava a sua docente. A professora era paciente. 

E numa das saídas para casa, na rua, a professora a acompanhou, foram de braços enganchados, admirando os cachorros da rua, falando sobre o tempo. Ana olhou para seu tênis, o cordão desamarrado. Era uma boa hora para testar, falou com a voz manhosa: 

_ Professora, amarra meu tênis?

A professora a olhou com o olhar de mãe de comercial de TV, abaixou aos seus pés, aos pés de Ana, a perfeita, e com cuidado fez  um laço, um laço perfeito.

Ana ficou atônita, poderia finalmente dividir seu plano com alguém.

Havia um desejo escondido , algo que não contara a ninguém , como tantas outras coisas que nunca falará: a vontade enorme de morrer.  Morrer parecia algo fantástico, enfim uma aventura. Seria sua “Hora da Estrela”, como a Macabeia de Clarice Lispector, teria seu momento de glória. Contou o plano para a professora.  “Me leva até em casa profe, só hoje”.

Era perceptível nos olhos da mulher o quão preocupada estava com a situação. “Eu irei, mas você me contará o motivo desse seu plano”.

Com um silêncio ensurdecedor selando um acordo caminharam as duas de braços dados até a casa de Ana. Na garagem a professora avistou  um jovem cadeirante, pernas em osso, braços moles caídos ao lado corpo, hora ou outra alguma saliva corria no canto da boca. Estava  cercado de atenção pela mãe da menina que o alimentava na boca com bolacha e leite, e de momento em momento, limpava seu rosto com uma toalha, e num instante um beijo terno foi dado na testa do jovem, beijo de mãe. Era como um quadro perfeito de amor incondicional, era a Pietá contemporânea.

Ana olhou para a professora: “Meu irmão, professora. Meu irmão. Entende agora? Eu sou perfeita demais para fazer parte disso.”

Perfeita demais.

 

(Jaqueline de Andrade Borges)

 

O blog agradece a escritora por ceder o direito de publicação esse bem escrito texto. 





terça-feira, 13 de junho de 2023

Tu me resgatas todo dia (You rescue me every day)

Mãos, Sentindo-Me, Amor, Ternura

Tu me resgatas todo dia

De desfalecer de agonia

Com um simples sorriso

E seu jeito de menina.


Sou tolo por não te compreender,

E tentar não aceitar seu jeito de ser,

Esquecendo que o que eu amo

É você sem pôr nem tirar...


Veja quão louco é esse amar,

É exigir que pra ser feliz

A gente tem que se abandonar...

Quem se abandona, amando, me diz?


Amor não é gaiola, nem ao menos prisão,

Nem nó, pois é céu, é estrada,

É laço, é bater de asas, é caminharmos

tão soltos, tão nós, juntinhos, jamais a sós...


Te amo minha companheira!!!

(Marcio Lima)

Fonte da imagem:  https://pixabay.com/pt/photos/m%C3%A3os-sentindo-me-amor-ternura-3454116/



terça-feira, 6 de junho de 2023

Metamorfose (metamorphosis)


Desde a mitose das células até  o nosso inspirar e respirar,  é a vida em transformarão.  Mudam os pensamentos,  os sentimentos,  as percepções, mudamos nós,  as paisagens, os outros.

Alguma coisa é deixada, alguma coisa é  recebida, algumas relações  se rompem, outras   solidificam-se, é  crível que nos assustemos diante das novidades, tememos as perdas inevitáveis, ficamos estupefatos com afetos e amores inesperados ou revelados,  quão gratos somos pelas surpresas graciosas que surgem destas mudas, mudanças. Percebo em mim estas nuances. Mudar é  recriar-se. Ser camaleão ou fênix,  ser qualquer coisa que puder acreditar. Por vezes fui, sou...poetisa, menina, mulher, profissional,  mãe,  amiga, irmã,  filha, também a lagarta, a crisálida e a borboleta. Em cada mudança  descubro em mim as minhas velhas raízes,  meu medos tolos, minhas esperanças incansáveis. Reúno forças  pra bater as asas, alcançar  os céus sem deixar o cheiro de orvalho  sair das entranhas. Mudar exige coragem, não de heroísmo.  Coragem de escolher diante da bifurcação qual direção seguir sem pensar no outro caminho e saber apreciar as novas flores  e espinhos dessa caminhada. Os caminhos já percorridos são parte dessas novas escolhas. Tem amores e amigos que nem o Sr. do Universo (o tempo) apaga, tem alegrias e tristezas que nos rondam as lembranças sem avisos, mudar é permanecer. Permanecer na essência do que és , seja o que  for, pois da matéria primeira não nos desfazemos, ainda brilha em nós  o pó  cósmico  das estrelas. Eu bem sei quantos corações  carrego comigo, quanto de gratidão, amor e amizade aprendi com pessoas extraordinárias,  quanto de resiliência  exigiu a vida para que o continuar fosse possível. Das grandes lições a maior é o que construímos só  permanece quando a  base for sedimentada no afeto,  no  respeito e na dignidade. Mudar é preciso,  saber estar também. Estou nessa fase nova de lua  minguante, que vai se enchendo de novas histórias.  Aos amigos de outrora há espaço bastante pra compartilhar o futuro, os novos sonhos, as novas  derrotas  e conquistas. Aos novos amigos sê bem vindos nessa roda gigante, nesse moinho de sonhos, nessa trilha  infindável  de realidades múltiplas. Somos a própria  metamorfose. Sem mais  vou aqui construindo o novo, o velho, híbrida, metade  águia, metade pessoa,  como nas mitologias todas, infinitamente  feita de carne, ossos, penas, garras, mas acima de tudo humana.  

Stela Sartori


O blog agradece a gentil contribuição da escritora!


Imagem obtida em: https://pixabay.com/pt/photos/almirante-vermelho-pupa-casulo-3978413/ 





meu amigo Jesus... (my friend Jesus...)

 Jesus Cristo, Pastor, Religioso

meu amigo Jesus me convidou para uma festa de casamento, pense o cara loco este Jesus, me falou da perifa... dos pretos, dos pobres...  do amor ao próximo;  me falou das putas; de uma tal Maria Madalena... me falou que esteve  preso e ninguém foi visitá-lo... pense na doidera do cara, me falou que chicoteou uns cidadãos de bem dentro da igreja... e pior, foi me apresentar aos amigos dele... um tal Pedro... pinguço... Zaqueu, cobrador de impostos... e mais uns onze periféricos... e depois que acabou o vinho ele me apresentou a mãe Dele,  uma tal Maria, jeito de menina... jeito das mulheres guerreiras das perifas... e este Jesus meu amigo fez seu primeiro milagre a pedido de sua mãe.... tmj meu parça

(Everaldo Fogaça)

O blog agradece o autor por sua gentileza pela autorização para publicação. 

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/jesus-cristo-pastor-religioso-2651816/ 

domingo, 4 de junho de 2023

príncipes e princípios... (princes and principles...)

 Garoto, Corrida, Sombra, Direção

Óh príncipes e princípios...

Haveria algo que justificasse a perda de minha ética, que não fosse uma resposta ao que vejo de forma quase mimética?

Haveria da dor alheia ser meu consolo em nome de um bem maior?

Qual seria minha medida para saber se o mal que assola um homem não é maior que a dor que se encerra no âmago de um povo?

Haveria fortuna que pagasse uma noite mal dormida? Ou o declínio profundo de meu ser?

Saberia o sábio a responder se perder, às vezes, é vencer?

Qual seria o correto? Minhas muitas dúvidas que pairam em minha mente? Ou a certeza que me deixa oniricamente feliz?

Óh, governo de meus dias, de minhas horas, de meus espaços e devaneios...

Eu saberia que logo ali, após deixar o óbvio em minha frente correr, poderia ser ele a chave de minhas tantas indagações e respostas? Ou seria ele só um animalzinho preguiçoso sob uma deliciosa sombra de uma árvore qualquer?

Seria viável o falar ou o pensar verdades? Qual dessas duas faculdades me causariam menos penares? Ou deixaria o saber se esvair por ele mesmo em um poço qualquer?

Ainda, o que me invade os recônditos, é saber que o amor anda tão próximo de seu oponente, o ódio, e que converter um em outro é uma questão de átimo... E, que confiar segredos a quem ama pode ser uma brasa na mão mal protegida... Logo eu, pensar assim que já fui tão apaixonado e amante das mesmas coisas  e pessoas...

Sou um sol apagado de mim mesmo, espelho tão opaco de mentiras tão consolidadas difíceis de serem desmentidas... Um verdadeiro cético de nada, que cai fácil na primeira retórica que carrega algo de pomposo e aparentemente verossímil... 

Sou presa fácil num mundo selvagemente moderno, selvagemente sagaz e egoísta, sedento de luxúrias e poder... 

Sou amoroso e ao mesmo tempo cético... Há um antagonismo ridículo em ser assim? Posso ter raiva e amor ao mesmo tempo? Logicamente não, humanamente sim... E, pergunto ao meu príncipe, aquele que habita em mim... Por que sou assim?

(Marcio Lima)

 

Obs.: O presente poema foi inspirado a partir de aulas/vídeos sobre a obra de Nicolau Maquiavel e Michel de Montaigne, a partir da interpretação subjetiva de seu autor.


Imagem obtida em: https://pixabay.com/pt/illustrations/garoto-corrida-sombra-dire%C3%A7%C3%A3o-4054961/

Este momento 1...

  Dói.  Forma estranha de começar um poema. Forma medíocre para o mundo que só vende fórmulas para livrar-nos da dor. Assumir alguma dor é m...