sábado, 30 de janeiro de 2021

Os olhos das senhorinhas


      











  Por esses dias fui a um consultório e comigo além da atendente havia duas senhorinhas, todas as presentes, de máscara. Por tanto nosso primeiro contato além do 'bom dia" foi pela expressão dos olhos. Uma tinha o sorriso e a ternura refletidos no olhos. Outra, um olhar ressequido, investigativo de quem não confia em nada. Enquanto esperava por minha receita, a de olhar alegre puxou assunto sobre a vacina contra o Covid. Estava preocupada e ansiosa pois queria estar imunizada logo. Eu também expressei que essa também era minha vontade. A senhorinha falou da lotação dos hospitais, das crianças que voltariam às aulas. E emendado os assuntos, falou para mim que não entendia como podia tantas mulheres engravidarem na pandemia pois era grande o risco de contaminação por Covid e como as mesmas poderiam manter um pré natal adequado etc e tals. Eu apenas sorria, tecia um "pois é" um " humhum". A outra senhorinha, falou alto do canto do balcão, num tom de rancor: 
_E essas mães solteiras? Porque têm filhos solteiras?
Eu disse:
_ Porque os pais abandonaram seus filhos.
 Ela não ouviu, ou fingiu que não ouviu e continuou gesticulando seus magros braços:
_ Elas tem filhos desse jeito porque quiseram, porque querem dinheiro do governo, porque são um bando de vagabunda, blá, blá, blá...
Olhei bem para a senhorinha ressequida e como se eu tivesse visão de raio -x percebi o quanto estava desnuda de humanidade. Percebi que a mesma era tão vítima quanto qualquer outra mulher e reproduzia cegamente o que com certeza, aos gritos a fizeram acreditar. E aos longos dos seus aparentes 70 anos, essa era a verdade que ela conhecia. Voltei meus olhos para a senhorinha falante e feliz, ela se silenciou diante do rancor da outra. Passou a puxar assunto sobre o tempo, mas sem perder a alegria do olhar, falava doa dias chuvosos com a certeza da vida que a água faz brotar.
Recebi meu receituário, agradeci a atendente, despedi-me das senhorinhas e saí com uma bruta pena de quem ficou. Pena da senhorinha feliz que teria que ser paciente para escutar tanto maldizer e pena da velhinha cheia de ódio e preconceito, filha de um machismo de raízes tão profundas quantos as rugas de sofrimento de seu rosto, que jamais perceberia ternura e a alegria nos olhos de quem estava em sua companhia naquele momento.

Jaqueline de Andrade Borges

O blog agradece à autora por autorizar a publicação do texto.

2 comentários:

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