quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Mais um anjo sem voz...


Lá vai ela. Mais um serzinho no meio da multidão. A gaiota carregada de papelão, bem próximo ao braço da gaiota um pequeno bebê olha curioso sua mãe. Bebê esperto próximo ao seu primeiro ano de vida, uma vivacidade e um brilho incomum naquele olhar. Uma alegria de uma vidinha que nascera para mudar a realidade de sua mãe, a esperança de uma vida diferente da sua realidade. A mãe magérrima olha com amor aquele reluzente bebê, que segura à borda do carrinho para não cair... Segura filho.... diz a mãe. A esperança é dar estudo ao seu rebento, fazê-lo "dotô". Ter entendimento do mundo. Olhar pras letrinhas daquele amontoado de papéis,  que junta todos os dias para seu sustento,  e saber o que diz lá. Essa é sua maior curiosidade. Achava que a mudança viria por ali, toda essa papelada tem que possuir a receita de como mudar os nossos dias. 
Empiricamente, filosofava.. o ar estava morno, o sol quente... 
Logo o carrinho se encheu. Quase não cabia mais seu filho ali. Hora de pra casa voltar. Para sob a sombra de uma árvore, tira de sua mochila pendurada do lado do carrinho uma garrafa de vidro, dessas de refrigerante, cheia com chá. Um sanduíche de pão surrado com um ovo frito,  é seu  almoço. Olha para o filho. Ele sorri. E, enquanto o dá de mamar, come. Muita gente passava por ali, não se incomodava, pois já estava acostumada à invisibilidade. Logo após comer,  voltaria ao ferro velho e venderia sua carga. Daria para dar mais uma viagem até à tarde. Dava amor extremo àquela criaturinha, mas preferia deixa-la na creche sobre a proteção das atendentes, para que ele não sofresse os seus dias na sua pesada e perigosa lide... mas a realidade era que a creche já estava pronta havia três anos... mas não estava funcionando, a justificativa dos governantes, não havia gente interessada... embora ela se localizasse em um bairro de extrema pobreza. Muitos por ali, com um pouco mais de conhecimento e percepção da realidade, comentavam que a real situação era que não estava em período eleitoral... Assim que ele se aproximasse ela seria inaugurada... Essa pobre mãe não tinha voz... e cada vez a perdia mais ainda... O dono da venda na qual fazia suas comprinhas dizia que tinha muito dó dela, mas não podia fazer nada. Ele dizia,  ela merece. Não votou no meu candidato... Corria um ódio recôndito àquela senhora.  Achava isso porque esta mãezinha tinha em seu rancho uma placa do candidato de seu opositor político... para ela, só um tábua para tapar os buracos de sua casa... Mais um dia chega ao fim... no berço velho estava sentadinho seu anjinho... Ah, se houvesse uma mão caridosa a nos ajudar! Talvez essa cruz não fosse tão pesada... O anjinho no berço, queimadinho de sol, dormia... A mãe a apreciar seu sono de criaturinha tão linda... seu orgulho, seu amor... Pensava ela, um dia ele terá voz... Sim, ele terá voz... Enquanto no rádio velho, na hora do Brasil, seu ministro pedia a ela pra contribuir um pouco mais, com uma chamada reforma fiscal... Ela não entendeu o que era, mas bem pronunciadinho soava bem... pensava, deve ser algo bom... Ah, soubesse ela, que seu pão surrado ficaria ainda mais caro... Mas a creche... 
Marcio José de Lima, Guarapuava, 30/12/2016

4 comentários:

  1. Boa prosa para pensar sobre a realidade de muitos!

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    1. Obrigado Alexandre. É dura, mas existe, embora muitos queiram virar a face para não vê-la, nem ouvi-la, quem dirá então se compadecer...

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  2. Comovente conto sobre a dura realidade que assola o mundo,o nosso .
    Parabéns

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  3. Às vezes temos que falar dela e sobre nossas escolhas, que nem sempre fazem bem aos nossos semelhantes... Dura e triste realidade. Um grande abraço!

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